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A problemática da distribuição da Bíblia em Portugal na transição para o século XX

No alvor da República em Portugal a distribuição organizada e consistente da Bíblia já era coisa antiga no país. Anos antes, em Outubro de 1907, a propósito da prisão e condenação em primeira instância do colportor José Alexandre, da Sociedade Bíblica, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o absolveu da acusação de distribuir “Bíblias falsas” rezava assim no seguinte passo do texto: “… havendo até no reino uma muito antiga Agência ou Sucursal […] da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, com sede em Inglaterra e escritório em Lisboa…”. Não admira que os juízes desembargadores considerassem a agência portuguesa da Sociedade Bíblica como uma entidade “muito antiga” já que a sua acção tinha começado em território nacional em 1809, quase um século antes deste acontecimento.

Mais antiga ainda era a presença e tradução da Bíblia para a nossa língua. Na verdade, a presença da Bíblia na sociedade, na cultura e na língua portuguesas confunde-se com a própria identidade da nação. Todavia, a consolidação dessa presença é bastante irregular e muito pouco uniforme ao longo do tempo relativamente aos canais e suportes utilizados. O Professor Aires Nascimento resume bem este paradoxo ao afirmar que “é tardia a tradução portuguesa do texto bíblico, mas nem por isso a Bíblia está ausente na cultura que formamos”. Neste sentido, a Sociedade Bíblica acaba por desempenhar um papel absolutamente inovador contribuindo para o estabelecimento definitivo de estruturas próprias de divulgação bíblica que só se viriam a desenvolver noutros contextos na segunda metade do século XX, nomeadamente com a criação em 1955 da Difusora Bíblica, o mais relevante e operoso movimento de apostolado bíblico na Igreja Católica em Portugal.

Embora a designação, o conceito e mesmo muitos dos conteúdos bíblicos estejam profundamente enraizados na sociedade portuguesa, com expressões culturais muito fortes – na pintura, na escultura, na arquitectura, na literatura, na dramaturgia – a presença da Bíblia tout court acaba por ser muito recente. Por razões económicas, culturais e, fundamentalmente, religiosas a sua divulgação com algum tipo de expressão confunde-se no tempo com a história da Sociedade Bíblica no país e, de certo modo, com a política de distribuição do livro nos últimos 200 anos. A conjuntura económica não é um factor despiciendo dado que poucas seriam as entidades nacionais que no início do século XIX dispunham de fundos e mesmo de vontade para investir somas significativas de dinheiro na difusão cultural mormente na produção editorial. Apesar de nesta época já começar a haver um assinalável esforço na impressão e distribuição livreira, só “com o liberalismo assistimos a uma difusão muito grande da actividade impressora e editorial, que se vai espalhar pelo País, sob forma variada”, de acordo com Luís Reis Torgal e Isabel Nobre Vargues. A Sociedade Bíblica, não ocultando o forte sentido de missão que norteava a sua actividade, viria a dar um valioso contributo para o estímulo à alfabetização e à leitura através dos milhares de exemplares de publicações bíblicas distribuídos quase exclusivamente por si em Portugal ao longo de cerca de século e meio. Ainda que houvesse dinheiro e vontade, o atraso estrutural da população portuguesa no que diz respeito à sua alfabetização era per se um factor limitador da ação da Sociedade Bíblica, já que esta não dispunha de quaisquer outros suportes de difusão massiva da sua mensagem para além do livro. Acostumados a contextos em que a alfabetização e a instrução já eram realidades quase universais, os primeiros agentes e dirigentes da Sociedade Bíblica – na sua maioria ingleses e escoceses – não estariam preparados para enfrentar uma situação no território português quase diametralmente oposta. Valerá a pena mencionar que o cálculo da alfabetização para os Países Nórdicos, Alemanha, Escócia e Suíça em 1850 ronda os 95% da população enquanto, no mesmo ano, só chegava aos 15% na Rússia, Balcãs e Portugal. Na Inglaterra a taxa de alfabetização era um pouco mais baixa do que na Escócia mas mesmo assim atingia os 70%. A situação viria a arrastar-se por demasiado tempo tal como as estatísticas demonstram: só no recenseamento geral da população de 1991 é que, pela primeira vez, a percentagem de pessoas sem saber ler passa a ser inferior a 10%. Os contornos religiosos também são relevantes. Segundo Henrique Medina Carreira a aceleração do desenvolvimento cultural nos países do Norte da Europa “deve-se, ao menos em boa parte, à Reforma protestante, aos ideais humanistas e iluministas do século XVIII e ao desejo dos governos de assegurarem a integração nacional. A influência do protestantismo terá sido significativa, pois a aprendizagem da leitura era essencial ao conhecimento directo do texto bíblico”. Na verdade, muito do que está em causa com o surgimento da acção da Sociedade Bíblica em Portugal é este “conhecimento directo do texto bíblico”. Como já se mencionou acima não estava em causa o desconhecimento das narrativas e dos conteúdos bíblicos nos seus mais diferentes géneros literários. No entanto, a possibilidade de se aceder ao texto bíblico sem qualquer mediação é indubitavelmente uma novidade para o povo português.

A despeito dos juízos políticos ou sociais mais ou menos legítimos que se possam fazer, Portugal era já um país diferente na primeira década do século XX, também no que diz respeito à distribuição da Bíblia. De acordo com informação publicada por Santos Ferreira em A Bíblia em Portugal, fornecida em 1905 por Robert Moreton, agente para Portugal da Sociedade Bíblica, o número total de Escrituras distribuídas desde 1809 era o seguinte: 221.342 Bíblias completas, 492.420 Novos Testamentos e 930.275 exemplares de porções da Bíblia. Embora a Sociedade Bíblica não tenha sido a primeira entidade a publicar e distribuir a Bíblia em Portugal não se pode ignorar o papel que esta entidade teve desde o início em prol da sua divulgação.

O trabalho sistemático de distribuição bíblica protagonizado pela Sociedade Bíblica foi em primeiro lugar facilitado fundamentalmente pelos capelães militares britânicos que permaneceram no território nacional durante toda a Guerra Peninsular. Numa segunda fase, a partir de 1835, passam a existir agências em Lisboa e Porto entregues aos cuidados de cidadãos britânicos. Todavia, é só a partir de 1864, com a criação do trabalho de colportagem, que a Palavra pode chegar a maior número de pessoas. No entanto, as restrições legais e o ambiente religioso hostil à acção destes homens constituíram uma ameaça permanente à presença da Sociedade Bíblica no nosso país. Para além das prisões, condenações, ameaças e ofensas a que os colportores da Sociedade Bíblica estavam quase permanentemente sujeitos no seu verdadeiro trabalho de missionação, a actividade da instituição chegou a ser levada às mais altas instâncias do país. No Diário da Câmara dos Pares do Reino de 14 de Março de 1866 lê-se a certa altura a seguinte afirmação numa interpelação feita ao Ministro do Reino: “a ninguém são hoje ocultos os esforços da sociedade bíblica para propagar o protestantismo em Portugal. […] O zelo que se mostra contra os reaccionários deve mostrar-se também contra os protestantes, que vêm aqui abusar do asilo que se lhes dá. É preciso … que as posições se definam, que as ideias se manifestem, que os campos se extremem, e as bandeiras se levantem bem altas”. Esta verdadeira “declaração de guerra”, que apesar de tudo não teve o eco que o seu autor esperava, era apenas uma das evidências do clima de hostilidade que a Sociedade Bíblica teve de enfrentar.

Não admira, pois, que o golpe de 5 de Outubro de 1910 tenha trazido uma esperança e um ambiente de certa euforia nos meios protestantes que os anos vindouros não viriam a confirmar na mesma medida dessas primeiras expectativas. Na publicação da British and Foreign Bible Society (BFBS), The Bible in the World podia ler-se em Janeiro de 1911, por isso apenas três meses antes da promulgação da “Lei de Separação”: Na nova República em Portugal foi proclamada total liberdade religiosa e existem agora mais do que nunca oportunidades maiores e mais abertas para a disseminação das Escrituras. A nossa Comissão [da BFBS] resolveu aproveitar todas as possíveis oportunidades decorrentes da situação presente.” No entanto, apenas umas linhas abaixo já se notava uma certa preocupação com o que a ausência de formação religiosa poderia provocar; a este propósito lê-se ainda: “Agora que toda a instrução religiosa foi banida das escolas públicas em Portugal é mais necessário do que nunca que o Novo Testamento seja levado a todos os lares.” Ainda no mesmo ano, em Outubro, já o tom é diferente pois ter-se-á percebido que as ameaças à distribuição da Bíblia continuavam, agora até mesmo alargadas a outros contextos e agentes. Lê-se novamente em The Bible in the World que Robert Moreton, o agente em Lisboa, “mencionou algumas situações de oposição que a Bíblia tem enfrentado, não somente por parte de padres sectários, mas até mais de livres-pensadores fanáticos. Uma onda de materialismo tem varrido este país, especialmente nos distritos do sul, como resultado da recente revolução.”

Apesar de o regime republicano ter confirmado algumas liberdades civis na sequência da evolução natural da sociedade portuguesa, em linha com o que ia acontecendo pela Europa e um pouco por outras partes do mundo, faltariam muitos anos, décadas mesmo, até à assunção plena de uma liberdade religiosa no edifício legislativo da nação. Embora já com dez anos do novo século se possa continuar a questionar a presença real dessa liberdade religiosa no nosso contexto social a verdade é que no que concerne à distribuição bíblica não existem atualmente quaisquer limites legais ou eclesiásticos à sua concretização. Todavia, outros desafios se colocam não só à Sociedade Bíblica do século XXI como também a outras entidades que partilham atualmente a mesma missão.


Textos de referência:

[British and Foreign Bible Society]. The Bible in the World(1911).

Diversos autores. “Parte I – Nos 200 anos da Sociedade Bíblica”in Revista Portuguesa de Ciência das Religiões (Ano IV-2005).

Nascimento, Aires A. “A Bíblia em português: entre estar e dizer, as aporias de um percurso” in Igreja e Missão (2008).

Santos Ferreira, G. L. A Bíblia em Portugal (1906).

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